10.12.09

Vão do MASP recebe esculturas de Abelardo da Hora

O escultor, desenhista, gravador, gravurista e ceramista Abelardo da Hora, um dos raros expressionistas brasileiros ainda em atividade, abre no dia 15 de dezembro em São Paulo, a exposição retrospectiva de seus 60 anos de carreira. Vinte e cinco toneladas em esculturas, gravuras, desenhos e cerâmicas estarão no vão do MASP até o dia 14 de fevereiro. O nome da mostra – “Amor e Solidariedade” – é uma referência à dualidade da obra de Abelardo, em que figuras esquálidas de retirantes nordestinos convivem, no mesmo espaço, com peças de nus femininos feitas de concreto polido e bronze. “O amor eu dedico às mulheres e a solidariedade ao povo”, explica o artista. Depois de São Paulo, as peças de Abelardo vão para João Pessoa, Recife, Caracas, Paris (Museu George Pompidou), Bruxelas e Buenos Aires .

Boa parte do trabalho de Abelardo da Hora tem um forte componente político, que se confunde com sua própria trajetória de vida. Ligado ao Partido Comunista, ele foi preso umas 70 vezes e tem seu nome ligado à criação do Movimento de Cultura Popular (MCP), no Recife, que influenciou outras iniciativas do gênero no País. Ao mesmo tempo, nunca deixou de lado a sensualidade dos nus femininos.

Esse contraste sempre marcou a carreira de Abelardo, mas o essencial, segundo os críticos, é que ele nunca se curvou aos modismos. Preferiu comover-se tanto ao retratar as condições subumanas da sociedade nordestina como corpos femininos que transmitem ao mesmo tempo sensualidade e recato. “Quando ele modela um braço de uma de suas deusas temos a sensação única de ser distinguido com o privilégio de assistir ao nascimento de Vênus, de Ceres, da beleza e da fecundidade, na hora em que Deus criou a carne”, observa o pintor e discípulo José Cláudio. “Sua arte, sensível aos valores plásticos e visuais do modernismo, não é episódica nem faz concessões”, acrescenta Mário Barata, um dos maiores conhecedores do conjunto de uma obra que inclui mais de mil trabalhos espalhados pelo mundo.

Esculturas e desenhos de Abelardo estiveram ou estão em locais tão distantes quanto Ulan Bator, na Mongólia, no Seminário Metodista do Tenenesse (EUA), no Euro Museu da República Tcheca e no jardim do marchand Abelardo Rodrigues, no Cosme Velho, Rio. O Recife tornou-se seu museu a céu aberto, com figuras expostas em parques, praças e na entrada de edifícios. “Abelardo da Hora define sua arte não como finalidade hedonística e experimental, mas como linguagem-brado e como gesto de trincheira”, afirmou o crítico José Geraldo Vieira.

Nascido em 1924, na Usina Tiuma, em São Lourenço da Mata, bem perto da capital pernambucana, chegou ainda criança ao Recife, em 1932. Desse período inicial na cidade grande, conheceu as brincadeiras de crianças pobres do bairro da Caxangá, que iriam influenciar parte de seu trabalho na vida adulta.

Mais tarde, num ambiente em que já brilhavam artistas do porte de Vicente do Rego Monteiro (1889-1970) e Cícero Dias (1907-2003), Abelardo cursou Artes Decorativas no Colégio Industrial Professor Agamenon Magalhães, estudou escultura na Escola de Belas Artes de Pernambuco e também concluiu o bacharelado na Faculdade de Direito de Olinda. Mas nunca exerceu a profissão de advogado. Mesmo porque a chance de virar artista profissional bateu-lhe a porta em 1942 quando o industrial Ricardo Monteiro Brennand entusiasmou-se por sua obra. Resultado: entre 1943 e 1945, morou na casa dos Brennand e, nos espaços do Engenho de São João da Várzea, realizou vários trabalhos em cerâmica, jarros florais e pratos com motivos regionais em relevo e terracota.

A partir daí o trabalho de Abelardo da Hora começou a marcar a toda uma geração de artistas e intelectuais de Pernambuco. Tanto em estética quanto em política, teve forte influência nas carreiras de artistas plásticos que desenvolveram trajetórias brilhantes em todo o País. Nesse time estão o amigo de infância Francisco Brennand, além de Wellington Virgolino, Corbiniano, Ionaldo, Gilvan Samico e José Cláudio.

Depois de uma passagem pelo Rio, na década de 40, Abelardo voltou a Pernambuco para realizar, em abril de 1948, uma exposição de esculturas na Associação dos Empregados do Comércio, sob o patrocínio da Prefeitura do Recife. Depois do sucesso da exposição, criou com o artista plástico Hélio Feijó (1913-1991) a Sociedade de Arte Moderna do Recife (SAMR). Em 1952, fundou o Atelier Coletivo, grupo que iria influir profundamente na produção cultural de Pernambuco.

O Atelier Coletivo, como se vê, não trataria apenas de artes plásticas. De seus quadros faziam parte, por exemplo, os escritores Aderbal Jurema (1912-1986) e Hermilo Borba Filho (1917-1976) e o teatrólogo Luiz Mendonça. Mas foi com quadros e esculturas que o movimento cresceu, com a promoção de salões de arte em Pernambuco e participação em outros espaços do País, como o Clube da Gravura de Porto Alegre, dirigido por Carlos Scliar. Da capital gaúcha, a exposição ganhou o mundo. Percorreu todos os países da Europa, a União Soviética, China, Israel e Mongólia.

O atelier não foi o único movimento artístico que Abelardo criou ou ajudou a criar. É o caso do Movimento de Cultura Popular (MCP), quando ele era chefe da Divisão de Parques e Jardins da Prefeitura do Recife na administração de Miguel Arraes, entre 1960 e 1962. O MCP também refletia um sentido altamente engajado e seu objetivo era “ampliar a politização das massas, despertando-as para a luta social”, conforme preconizavam seus participantes. O movimento tinha vários pilares além das artes plásticas, com destaque para a literatura, por meio da participação de escritores, jornalistas e poetas como Ariano Suassuna, Carlos Pena Filho, Aloísio Falcão e Hermilo Borba Filho. Havia até mesmo um trabalho de alfabetização, comandado pelo jovem educador Paulo Freire (1921-1997), e entusiastas no Brasil inteiro - Darcy Ribeiro, o mais exaltado desses admiradores à distância, chegou a prescrever a idéia para todo o País. Mas ai veio o golpe de 1964 e a festa do MCP acabou.

No auge do Movimento de Cultura Popular, em 1962, Abelardo criaria um de seus trabalhos mais pungentes: a série de 22 desenhos de bico-de-pena “Meninos do Recife”, que foi lançada em álbum como nota de apresentação de Miguel Arraes. Um desses desenhos ilustra a edição francesa do livro “Geografia da Fome”, a pedido de seu autor, o médico e professor Josué de Castro (1908-1973). Os desenhos mostram a miséria das crianças de rua, com seus pés descalços na lama, pernas e braços finos, barrigas inchadas, rostos angulosos e magros e vestimentas de molambo.

Depois de 1964, quando seus “Meninos do Recife” foram apreendidos pelos militares - e parte da coleção queimada em frente ao jornal Diário de Pernambuco, junto com exemplares da cartilha de Alfabetização do MCP - Abelardo, já fora do PCB, teve duas outras incursões fora de seu Estado natal: São Paulo e Paris. Nos dois casos, teve que deixar a família no Recife. Na capital paulista foi acolhido pela amiga arquiteta Lina Bo Bardi e seu marido, Pietro Maria Bardi, diretor do Museu de Arte de São Paulo (MASP). O escultor conhecera Lina, no início dos anos 1960, quando ela dirigia o Museu Solar do Unhão, em Salvador. Com ajuda do casal, ele conseguiu emprego como cenógrafo na antiga TV Tupi.

Ao mesmo tempo trabalhava na instalação do Museu Lasar Segall, que seria inaugurado em 1969, e na série de desenhos “Danças Brasileiras de Carnaval”. A pedido de Bardi, também participou com novos desenhos da mostra que abriu a Galeria Mirante das Artes, em 1967, e organizou uma exposição de artistas pernambucanos no Museu de Arte Contemporânea da USP, dirigido por Walter Zanini. A mostra era basicamente um reencontro de Abelardo com alguns seus antigos discípulos - Samico, Maria Carmen, Anchises Azevedo e Wellington Virgolino.

Mais uma vez de volta ao Recife, em 1968, Abelardo mudou radicalmente de vida e foi trabalhar na empresa de pesca de seu irmão Luciano. Diante das perseguições promovidas pelo regime, não tinha condições de sobreviver de arte. Quando a repressão baixou um pouco de tom, Abelardo retomou a atividade artística em sua casa-atelier na Rua do Sossego e ali produziu uma sequência de esculturas de corpos femininos deitados, que balizaria o “outro lado” de sua obra - o toque da sensualidade em cimento e bronze. “Mulher, objeto de Repouso” foi a primeira dessa série. Depois desse período recifense, Abelardo passou uma temporada em Paris, para retornar ao Recife no início dos 1980.

1 comment:

Rubens XD said...

Estive na exposição esse final de semana, muito legal! Os trabalhos dele mais puxados ao cubismo com inspiração no Portinari me deixaram fascinados

Tirei algumas fotos, quem quiser conferir só entrar em http://degraca.acholegal.com/abelardo-da-hora-no-masp/