16.11.09

100 telas, 60 dias & um diário de viagem – Amazonas 1975


Em 1975, o artista plástico participou de uma das célebres expedições científicas lideradas pelo zoólogo Paulo Vanzolini. Sua produção é agora reunida em livro, que sai pela Imprensa Oficial do Estado. O lançamento será em 20 de novembro, sexta-feira, juntamente com a exposição de suas 100 telas, no Museu Afro Brasil, em São Paulo.

Uma Amazônia ainda pouco explorada na década de 70, documentada numa centena de pinturas em óleo sobre tela, além de desenhos e anotações, se revela em “100 telas, 60 dias & um diário de viagem – Amazonas 1975”, do pintor José Cláudio da Silva, com texto de apresentação de Paulo Vanzolini, e editada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Ao mesmo tempo em que registra a beleza e a diversidade da fauna e da flora, a tipologia das habitações, a vida das comunidades ribeirinhas, a obra mostra também os bastidores de uma das viagens da Expedição Permanente ao Amazonas, realizadas por equipes chefiadas pelo zoólogo Paulo Vanzolini – também compositor –, conhecido pelo sucesso de suas composições como “Ronda” e “Volta por cima”.

O lançamento será no dia 20 de novembro, às 18 horas, no Museu Afro Brasil, que celebra o Dia da Consciência Negra com a abertura da exposição do artista pernambucano, cujas obras pertencentes ao acervo artístico do Palácio do Governo deixam pela primeira vez o palácio para serem exibidas até 20 de janeiro no museu. Nesse mesmo dia, será inaugurada a primeira exposição brasileira sobre Barack Obama.

A viagem ocorreu em 1975. José Claudio da Silva, então com 43 anos, residia em Olinda e recebeu da vizinha o recado de que havia um telefonema para ele. Era Vanzolini, que lhe perguntava se ainda queria conhecer a Amazônia. “Sim”, o artista lhe respondeu prontamente. “Então pegue a passagem na Varig e nos encontramos em Belém”. Assim, rapidamente, o pintor já estava a bordo do avião. De espírito ágil e extremamente inquieto, como é descrito pelos companheiros de viagem, o pintor tornou a experiência das mais produtivas e especiais. Àquela altura, era já um artista plástico consolidado: a trajetória iniciada nos anos 50, passando por ateliês de mestres como Abelardo da Hora, Carybé e Mario Cravo, lhe rendera prêmios, exposições e viagens internacionais. Aquela ida à Amazônia seria, porém, uma aventura única.

Durante muito tempo, o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZUSP) manteve na Amazônia uma “Expedição Permanente”. Tratava-se de 2 barcos, um deles, o “Garbe”, conduzido por outro, o “Lindolpho R. Guimarães”. As viagens eram feitas devagar, explorando as margens e parando demoradamente nas pequenas comunidades ribeirinhas. No conjunto das expedições foram coletadas cerca de 17000 espécies, destinadas ao Museu de Zoologia da USP, dirigido por Vanzolini até sua aposentadoria.

Existia a preocupação de que as mudanças ambientais decorrentes da ocupação humana na Amazônia resultariam na extinção de grande parte da flora e da fauna. Desse modo, a coleta era feita para preservar não apenas a memória do que um dia teria sido aquela região exuberante e rica em diversidade de organismos, mas para estudos que até hoje resultam em trabalhos indispensáveis ao desenvolvimento da ciência. Esse tipo de expedição propiciou um contato bastante íntimo com as populações locais. Para complementar os estudos científicos com uma visão cultural mais ampla, a cada viagem Vanzolini incluía um convidado especial: um intelectual ou artista não-zoólogo escolhido pela argúcia de pensamento e pelo interesse pelo Brasil. Nessa leva, houve historiadores, antropólogos, jornalistas, pintores e intelectuais de várias áreas.

“A escolha de José Cláudio da Silva deveu-se a diversos fatores. Primeiro, pela grande competência profissional. Depois, um temperamento curioso e ágil, disposto a se interessar por tudo que visse no caminho. Eu tinha certeza de que o que ele documentasse durante a viagem ficaria bem documentado. Finalmente, uma grande facilidade no convívio, indispensável em uma viagem em que um grupo pequeno se vê lançado num íntimo e contínuo contato”, explica Vanzolini, na apresentação da obra. Ao líder da expedição, José Cláudio dedicará várias passagens: descreve-o como homem generoso, pesquisador incansável e, ao mesmo tempo, alguém que está sempre a cantarolar alguma canção brasileira.

Durante a viagem, o artista pernambucano pintou uma série de mais de 100 telas que enriquecem hoje o patrimônio do acervo artístico do Palácio do Governo do Estado de São Paulo. Fez, além disso, uma série de desenhos, inúmeros deles expostos na mostra do Museu Afro Brasil. E manteve um diário de viagem, reproduzido em sua íntegra na presente edição, inclusive algumas páginas fac-similares.

No diário, o leitor encontrará descrições como esta: “Travei minha primeira batalha com o Rio Amazonas. Pintei uns cinco quadros. Vi uma árvore formidável, a sumaúma. A casa junto dela parecia um mosquito. Tivemos um vento atravessado e encostamos num barranco. O taifeiro Alonso saltou em terra para amarrar a popa numa árvore. O rio levou a palheta, que escorreu e caiu nágua. Minha oferenda à Iara. Já quase escurecendo entramos no Rio Madeira. É muita água. São rios tão largos que a idéia que se tem é que a proa do barco está dirigida para as margens, como se estivéssemos cercados pelo horizonte de mata. Hoje o menu foi galinha. Já comi tambaqui, matrinxã, tucunaré, carauaçu. O cozinheiro preparou com as cascas do ananá que eu tinha descascado um aluá com açúcar queimado — excelente! Parece que vamos pernoitar em Nova Olinda. De Olinda velha, onde moro, a Olinda Nova. No Rio Madeira, entre as duas Olindas.”

E esta: “Hoje, acho que quatorze de novembro, entrei pela primeira vez numa mata amazônica, aqui em Curuçá onde atracamos ontem ao cair da tarde. Inda deu pra subir o barranco e pintar o pôr-do-sol, que terminei só Deus sabe como, os carapanãs dando ferroadas que pareciam pontas de cigarro, e os próprios moradores do lugar fugiram dos bichos; fiquei sapateando e me sacudindo, o que não adianta muito porque eles colam mesmo e você tem que matá-los: não adianta abanar a mão perto que não saem, e não há intervalo nem de tempo e nem quase de espaço, porque mordem muitos ao mesmo tempo e o tempo todo e em todo lugar que a pele esteja descoberta. Por azar eu estava de calção.”

O AUTOR
José Claudio da Silva nasceu em Ipojuca, Pernambuco, em 1932. Estudou Direito em Recife, mas não concluiu o curso, para se dedicar integralmente à pintura. Em 1952, ingressa no Atelier Coletivo, da Sociedade de Arte Moderna do Recife, dirigido pelo escultor Abelardo da Hora, sendo um de seus fundadores. Mais tarde, a convite de Raimundo Oliveira, passa temporada em Salvador, onde trabalha com Mário Cravo, Carybé e Jenner Augusto. Encontra-se com Arnaldo Pedroso d’Horta e transfere-se para São Paulo, onde trabalha com Emiliano Di Cavalcanti. Frequenta a Escola de Artesanato do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Seção de Gravura, orientada por Lívio Abramo. Participa do Salão Nacional de Arte Moderna, Rio de Janeiro. Realiza sua primeira exposição individual em 1956. No ano seguinte, como prêmio concedido pela IV Bienal de São Paulo, viaja à Itália para temporada de um ano. Dedica-se, além da pintura, à escultura. Realiza exposições e publica catálogos diversos. Também publicou livros de crônicas.

100 telas, 60 dias & um diário de viagem – Amazonas 1975
José Cláudio da Silva
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
344 páginas
R$ 120,00

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